Alfabetização com Equidade e Qualidade: Fundamento da Educação Básica nos Anos Iniciais do Ensino Fundamental
Por ELLEN MONTINELLI | 05/05/2025 | EducaçãoAlfabetização com Equidade e Qualidade: Fundamento da Educação Básica nos Anos Iniciais do Ensino Fundamental
Ellen MONTINELLI1
RESUMO: A alfabetização é uma das etapas mais fundamentais do processo educativo. É durante os anos iniciais do ensino fundamental que a criança desenvolve as habilidades básicas de leitura e escrita, competências que servem de alicerce para todo o percurso escolar e para a participação ativa na sociedade. No entanto, apesar dos avanços nas políticas públicas educacionais, o Brasil ainda enfrenta desafios significativos relacionados à alfabetização, sobretudo quando se trata de garantir equidade e qualidade nesse processo.
Palavras-chave: alfabetização, equidade, qualidade.
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1 Professora da Física, Matemática e Pedagogia, montinelli@hotmail.com.
1. Introdução
A alfabetização com equidade implica reconhecer as desigualdades socioeconômicas, regionais, étnico-raciais, de gênero e de condições de aprendizagem entre os alunos e, a partir disso, oferecer recursos, metodologias e apoios diferenciados para garantir que todos tenham as mesmas oportunidades de aprender. Já a alfabetização com qualidade pressupõe o uso de práticas pedagógicas eficazes, fundamentadas em evidências científicas, que respeitem o ritmo de desenvolvimento de cada criança e assegurem a aprendizagem significativa.
Nas últimas décadas, a universalização do acesso à escola não foi suficiente para garantir que todas as crianças sejam plenamente alfabetizadas até os oito anos de idade, como estabelece o Plano Nacional de Educação (PNE). Dados de avaliações nacionais, como o SAEB, apontam que uma parcela expressiva dos alunos termina o 2º ano do ensino fundamental sem conseguir ler ou escrever com fluência. A pandemia da COVID-19 agravou ainda mais esse cenário, evidenciando a urgência de ações focadas na alfabetização.
Neste artigo, propõe-se uma análise aprofundada da alfabetização com equidade e qualidade, com foco especial nos anos iniciais do ensino fundamental. Serão abordados o contexto histórico e legal da alfabetização no Brasil, os desafios enfrentados pelos sistemas de ensino, as políticas públicas recentes, o papel do professor e da escola, e as estratégias pedagógicas que têm se mostrado mais eficazes. Ao final, propõe-se uma reflexão sobre os caminhos possíveis para garantir que nenhuma criança seja deixada para trás nesse processo essencial para o desenvolvimento humano e social.
Contexto Histórico e Legal da Alfabetização no Brasil
A trajetória da alfabetização no Brasil é marcada por avanços, retrocessos e contradições. Historicamente, o acesso à educação formal esteve restrito às camadas mais privilegiadas da sociedade, e a alfabetização era vista como um privilégio, não como um direito universal. Durante o período colonial e imperial, a educação era oferecida majoritariamente por instituições religiosas e era voltada a uma pequena elite, o que gerou uma enorme exclusão educacional da população negra, indígena e pobre.
Foi apenas com a Constituição de 1934 que o direito à educação começou a ser tratado como dever do Estado, mas as políticas públicas ainda eram fragmentadas e descontinuadas. O analfabetismo continuava a atingir grande parte da população, e a alfabetização era muitas vezes vista de forma simplista, como uma tarefa a ser cumprida apenas nos primeiros anos escolares, desconsiderando suas dimensões cognitivas, sociais e culturais.
O movimento de alfabetização de jovens e adultos, liderado por Paulo Freire na década de 1960, trouxe uma nova concepção de alfabetização, entendida como um processo de libertação, conscientização e leitura crítica do mundo. Freire defendia que alfabetizar não era apenas ensinar a ler palavras, mas também ensinar a ler a realidade. Apesar de interrompido pelo golpe militar de 1964, esse pensamento influenciou profundamente as políticas educacionais posteriores.
A Constituição Federal de 1988, ao afirmar que “a educação é direito de todos e dever do Estado e da família”, marca um divisor de águas na história da educação brasileira. A Lei de Diretrizes e Bases da Educação Nacional (LDB – Lei nº 9.394/1996) estabelece que o ensino fundamental tem por objetivo a formação básica do cidadão, garantindo o domínio da leitura, da escrita e do cálculo.
Nos anos 2000, o Brasil iniciou um movimento mais consistente de foco na alfabetização, com destaque para os seguintes marcos:
Programa Alfabetização na Idade Certa (PNAIC), criado em 2012, com foco na formação de professores, produção de materiais e avaliação da aprendizagem.
Base Nacional Comum Curricular (BNCC), aprovada em 2017, que define os direitos de aprendizagem das crianças e coloca a alfabetização como prioridade nos dois primeiros anos do ensino fundamental.
Compromisso Nacional Criança Alfabetizada, lançado em 2023, que visa assegurar que todas as crianças estejam alfabetizadas ao final do 2º ano, com foco em equidade, colaboração federativa e evidências científicas.
Esses marcos legais e políticos reforçam a importância da alfabetização como um direito de todos e um compromisso coletivo do Estado e da sociedade. No entanto, os desafios persistem, especialmente no que diz respeito à superação das desigualdades que impactam o processo de aprendizagem nos anos iniciais do ensino fundamental.
Desafios da Alfabetização no Brasil
Apesar dos avanços legais e das políticas públicas voltadas para a alfabetização, o Brasil enfrenta uma série de desafios que comprometem a aprendizagem plena e a qualidade do processo, especialmente nos anos iniciais do ensino fundamental.
Desigualdades Sociais e Regionais
Uma das maiores dificuldades está relacionada às desigualdades sociais e regionais que caracterizam o país. Crianças de famílias de baixa renda, residentes em áreas rurais ou periferias urbanas, e pertencentes a grupos étnicos marginalizados — como populações indígenas e quilombolas — apresentam índices maiores de atraso escolar e baixo desempenho em leitura e escrita.
Essas desigualdades refletem condições adversas fora e dentro da escola, como falta de acesso a materiais didáticos, infraestrutura precária, ausência de ambientes familiares estimulantes para a leitura e escrita, entre outros fatores.
Formação e Valorização dos Professores
Outro desafio crítico é a formação insuficiente e a desvalorização da carreira docente. Muitos professores que atuam nos anos iniciais não possuem preparação específica para trabalhar com alfabetização, ou não recebem formação continuada para atualizar suas práticas pedagógicas.
Além disso, baixos salários, falta de apoio técnico e condições de trabalho precárias contribuem para o desestímulo profissional, o que impacta diretamente na qualidade do ensino.
Metodologias e Práticas Pedagógicas Ineficazes
A alfabetização exige o uso de metodologias fundamentadas em pesquisas sobre o desenvolvimento da linguagem e da cognição infantil. No entanto, ainda é comum encontrar práticas pedagógicas defasadas, que focam apenas na decodificação mecânica de palavras, sem desenvolver a compreensão, o prazer pela leitura ou a produção textual.
A ausência de materiais didáticos adequados e a falta de diagnóstico e acompanhamento individualizado das dificuldades dos alunos também comprometem o processo.
Impactos da Pandemia de COVID-19
A crise sanitária causada pela pandemia de COVID-19 teve um impacto severo na alfabetização, especialmente entre as crianças que estavam nos anos iniciais do ensino fundamental. O fechamento das escolas e a transição abrupta para o ensino remoto geraram perda de aprendizado, especialmente para alunos com menor acesso à internet, dispositivos digitais e apoio familiar.
Estudos indicam que muitos alunos não receberam acompanhamento adequado durante esse período, aumentando o risco de evasão escolar e atrasos na alfabetização.
Avaliação e Monitoramento da Aprendizagem
A falta de sistemas eficientes de avaliação e monitoramento contínuo da alfabetização impede a identificação precoce das dificuldades dos alunos. Isso dificulta a implementação de intervenções pedagógicas específicas e a adaptação do ensino às necessidades reais de cada criança.
Conclusão
A alfabetização é um direito fundamental e um alicerce insubstituível para o desenvolvimento integral das crianças e para o exercício pleno da cidadania. Quando tratamos da alfabetização nos anos iniciais do ensino fundamental, é imprescindível considerar que a aprendizagem da leitura e da escrita não pode ser reduzida a um processo mecânico ou homogêneo. Pelo contrário, ela deve ser vista como uma construção complexa, que exige sensibilidade pedagógica, planejamento intencional e compromisso com a diversidade.
Garantir equidade na alfabetização significa reconhecer que nem todas as crianças chegam à escola com as mesmas condições de vida, de acesso à cultura escrita ou de apoio familiar. Portanto, políticas públicas e práticas pedagógicas devem ser direcionadas para oferecer mais àqueles que têm menos, ajustando o ensino às necessidades individuais, sem abrir mão de altos padrões de qualidade.
A qualidade, por sua vez, implica formação docente sólida, uso de metodologias fundamentadas em evidências, recursos adequados, avaliação contínua e apoio institucional. Não se trata apenas de alcançar índices em avaliações externas, mas de promover aprendizagens significativas que permitam a cada criança apropriar-se da linguagem escrita como ferramenta de expressão, reflexão e transformação social.
A realidade brasileira mostra que ainda há um longo caminho a ser percorrido. Os impactos da pandemia de COVID-19, as desigualdades estruturais e a falta de investimentos em formação docente são obstáculos importantes. Contudo, também há experiências exitosas, políticas promissoras e professores comprometidos que mostram que é possível avançar.
Por fim, alfabetizar com equidade e qualidade não é apenas uma meta técnica ou pedagógica, mas um ato de justiça social. É garantir que cada criança, independentemente de sua origem, tenha a chance de aprender, sonhar e transformar seu próprio futuro. O compromisso com essa alfabetização é, portanto, um compromisso com uma escola mais democrática, inclusiva e humana.
Referências
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